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“A criança só vai ter uma hipótese silábica se desenvolver habilidades de consciência fonológica, e eu quero que me provem o contrário.”
Artur Gomes de Morais, no dia seguinte ao lançamento do seu livro ‘Consciência Fonológica na Educação Infantil e nos Anos Iniciais’[1], concedeu entrevista sobre o tema da obra e outras questões que permeiam a alfabetização. Ele é graduado em Psicologia, mestre em Psicologia Cognitiva, doutor na sua área de formação e fez três estágios pós-doutorais. É professor titular do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, onde atua também no Centro de Estudos em Educação e Linguagem e na Pós-Graduação em Educação. Tem experiência na área de Educação, dedicando-se, principalmente, aos seguintes temas: psicolinguística, didática da língua portuguesa, alfabetização, formação do professor e psicologia da educação.
Concedeu esta entrevista para Clarissa Pereira, formadora nas redes sociais[2] e professora de atendimentos individualizados. Tem experiência docente na Educação Infantil e Anos Iniciais. É pedagoga, especialista em Alfabetização e mestra em Educação. Idealizadora e professora dos cursos online: CAP [Curso de Alfabetização na Prática], MAP [Matemática na Prática] e POP [Programa Ortografia na Prática].
Confira como foi a conversa entre os educadores:
Clarissa Pereira – Para darmos início, gostaria que contasse um pouco sobre como surgiu teu interesse pela alfabetização.
Artur Morais – Na verdade, iniciei a graduação em Psicologia devido à convivência com mestrandos em Psicologia Cognitiva, quando o curso passou a ser ofertado na Universidade Federal de Pernambuco, e com profissionais da educação. Encantou-me o pensamento: “É preciso saber como o aluno aprende para ensinar melhor”. E foi esse o princípio construtivista que eu abracei muito cedo, com 16, 17 anos. Na mesma época, coincidiu de eu conhecer os trabalhos de Paulo Freire. Então, minha entrada no mundo da alfabetização começou com a educação de jovens e adultos. No primeiro ano do curso de Psicologia, fui instrutor do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Foi muito enriquecedor, amadureci bastante e, apesar de não ter conseguido fazer revolução dentro do Mobral (risos), conheci muito do que Paulo Freire tinha produzido até então. Foi só a partir do meio do curso [de graduação] que me interessei por alfabetização de crianças. Na minha pré-especialização, fui fazer estágio de 500 horas em uma pré-escola, que só recebia crianças até a pré-alfabetização. A partir disso, não mais abri mão de pensar no “bê-á-bá”.
Clarissa Pereira – Em publicações anteriores[3], insistes na questão de propriedades da escrita alfabética e na importância de termos um ensino explícito dessas propriedades. Gostaria que tu falasses um pouco sobre elas para as professoras e o porquê é tão importante que tomem conhecimento.
Artur Morais – Em um livro anterior, sobre educação de jovens e adultos, eu e minha colega Telma Leal tínhamos feito uma primeira versão sobre essas propriedades. Quem conhece a obra, acho que de 2005, vê uma versão prévia, um primeiro ensaio. Esse tema remete à grande questão epistemológica de optar entre: (1) tratar a escrita alfabética como um sistema notacional, algo que requer um trabalho conceitual e que se filia a uma visão de aprendizagem construtivista; ou (2) continuar tratando o sistema alfabético como um código, que exige, simplesmente, isolar sons e decorar os grafemas correspondentes. Os empresários que defendem métodos fônicos dizem que isso é charlatanismo e baboseira, mas eu continuo acreditando que não. Se a gente quer superar um viés adultocêntrico, se queremos deixar de ver a criança como alguém que aprende exatamente como um adulto aprende um código, vamos ter que nos dar conta de que, antes de poder se beneficiar sabendo os sons das letras, ou sendo ensinada sobre isso, ela precisa compreender que a escrita registra pedaços sonoros e não as qualidades dos objetos como tamanho ou finalidade. Então, não é porque livro é pequeno que a palavra livro vai ser menor do que a palavra casa, certo? Ela precisa saber, ademais, que se escreve observando, não somente os “pedaços maiores”, que são as sílabas, mas os pedaços menores, que estão no interior das sílabas. Essas propriedades têm por um lado questões conceituais (compreender o que o sistema alfabético nota, registra) e, também, questões de convenção: eu escrevo da esquerda para a direita, de cima para baixo, não posso colocar quaisquer letras fora de ordem. Diria que a grande contribuição da psicogênese da escrita foi alertar para isso: antes de pensar como um adulto pensa, a gente vê que a criança precisa dar conta disso, que é um processo evolutivo, gradativo, que ela vai só conseguir se beneficiar de um ensino sistemático de relações letra-som se chegou a descobrir essas propriedades.
Não é o ideal uma criança chegar ao final do segundo ano sem ter o mínimo de autonomia para ler e escrever sozinha.
Clarissa Pereira – Junto a essas concepções das propriedades, tu também defendes a ideia de que as crianças não vão se alfabetizar só estando expostas aos textos. Temos a expressão “ditadura do texto”, que foi um pouco do que a gente passou aqui no Brasil – uma ideia errônea quando a gente começou a pensar no letramento. Hoje, fazemos uma volta ao que é alfabetizar em contexto de letramento. Então, eu queria saber quais estratégias podemos pensar a partir dessa relação de trazer o letramento, mas, ao mesmo tempo, pensar na alfabetização?
Artur Morais – É, a gente sempre tem a tendência de pendularizar de um lado para outro. Quando a psicogênese chegou, não foi sozinha. Em 1986, eu era assessor da rede municipal de Recife e fazia todo um trabalho de consciência fonológica nas escolas. Ao lado das informações que chegaram sobre a psicogênese, sobre a grande falácia dos métodos tradicionais (fônicos e silábicos), porque eles tinham a concepção errônea de que a criança aprende, simplesmente, fazendo associações e memorizando, a gente também viu chegar a público o conceito de letramento, ainda sem esse nome. Falávamos de leitura e escrita “de textos do mundo real” e “de textos significativos”, falávamos em abrir a escola para textos do mundo, no lugar das cartilhas, que eram falsos textos, pseudotextos. Então, para muitos educadores, o ensino do que é o sistema alfabético em si – a relação entre letras e sons, e o funcionamento do sistema – ficaram em segundo plano. A criança aprenderia convivendo somente com situações de leitura e produção de textos. Isso já se demonstrou, na prática, que não funciona. Os professores se viam loucos, corriam para o armário e pegavam qualquer cartilha para dar conta do que sabiam que era necessário fazer e estavam sendo proibidos de fazer. A outra questão era a falsa visão de construtivismo, que apostava que os meninos descobririam tudo sozinhos, sem intervenção. É necessário que se respeite a criança e, ao mesmo tempo, adeque-se o ensino, porque ela precisa. É necessário fazer uma grande reflexão fonológica, associada ao trabalho de letramento e, quando os meninos já estiverem um pouco mais avançados, aí a gente aposta que é preciso ensinar a relação entre letras e sons de maneira bem sistemática. Não é o ideal uma criança chegar ao final do segundo ano sem ter o mínimo de autonomia para ler e escrever sozinha.
Clarissa Pereira – Com isso, entramos na questão de autonomia. Temos um aspecto polêmico que é o tempo da alfabetização. Insistes muito na questão de iniciar um trabalho de alfabetização na Educação Infantil. Então, gostaria que tu falasses sobre o tempo para a alfabetização, talvez tu poderias retomar a ideia de alfabético x alfabetizado.
Artur Morais – Você tem três questões, de fato: 1- quando a alfabetização começa, ou pode começar na educação infantil? 2- Quando é possível considerar uma criança alfabetizada? e 3- Quanto tempo leva para que isso ocorra e ela tenha autonomia? Minha experiência tem mostrado, já desde a alfabetização das minhas filhas, que nas escolas progressistas, de classe média, onde os pais se esforçam muito para colocar os filhos, porque vai ser uma escola mais respeitosa, esse tipo de ambiente não tem fracasso escolar. As crianças se alfabetizam quase que naturalmente. Na atual escola dos meus netos, tenho acompanhado, e todas as turmas concluíram o último ano da Educação Infantil com hipótese alfabética, um presente para as professoras de primeiro ano. Nesse cenário, vemos que, talvez, não sejam necessários três anos para que esses meninos tenham autonomia para leitura e escrita no Ensino Fundamental. Mas, se formos para a rede pública (e se eu pegar os documentos curriculares da Educação Infantil Brasileira, as diretrizes curriculares, a última BNCC, que eu acho importante destacarmos mais adiante) existe um verdadeiro descaso com relação à presença da escrita na Educação Infantil. Mantenho a leitura de que não investir nesse início de reflexão, sobretudo aos 4 e 5 anos, tanto no mundo dos textos, como no das palavras, é ajudar a manter as desigualdades sociais. No apartheid educacional do qual estou falando, as crianças de classe média e da elite estão muito bem na escola, enquanto um sistema paralelo, lento, com uma série de problemas, continua nas redes públicas. Então, eu acho que o trabalho de reflexão sobre textos e sobre palavras tem que começar na educação infantil, para que haja redução nas desigualdades sociais. Mas, se a gente for ver, nem os meninos de classe média que estão terminando o primeiro ano leem ou escrevem com tranquilidade uma palavra como “transporte”. É preciso pensar que existe sílaba complexa, sim, apesar da psicogênese ter negado isso. Uma coisa é uma criança que está com hipótese pré-silábica: para ela todas as sílabas são complexas. Outra coisa é ver uma criança que já atingiu uma hipótese alfabética e escreve maleta e bota, escrever bordado, braço e branco. É complexo! Os meninos da escola de classe média, mesmo que tenham concluído bem o primeiro ano, vão precisar de um ano inteiro para consolidar as relações entre letras e sons. E para superar as grandes questões de ortografia, eu diria que até o terceiro ano. O que a gente poderia ver como consolidação, que implica em velocidade de leitura e autonomia, isso requer chegar ao terceiro ano do Ensino Fundamental com um bom ensino, com um ensino sistemático, com ensino cuidadoso e ajustado. Eu me lembro de quando a gente lançou o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), éramos muito atacados pelos empresários da Educação. Eles diziam que a gente queria alongar o tempo de alfabetização, que a gente queria que o ciclo da alfabetização durasse mais que o necessário, que era possível alfabetizar uma criança em um ano, o que é uma mentira. Porque nem as crianças privilegiadas de classe média chegam ao final do primeiro ano conseguindo ter essa autonomia de leitura. Era isso o que eu queria dizer: o sistema de ciclo remete ao processo que você citou. Não é porque uma criança atingiu uma hipótese silábica e alfabética que ela “resolveu a vida”, muito pelo contrário. Uma criança não está alfabetizada quando atingiu uma hipótese alfabética. Magda Soares discute e fala isso muito bem: “Olha, para se considerar uma criança alfabetizada, ela precisa dominar, com autonomia, as diferentes estruturas silábicas e as diferentes relações de sons e grafias da língua”[4]. Não dá para brincar, isso não se faz em um ano e é má fé de empresário desqualificar quem tem cuidado com o ensino da rede pública, dizendo que a gente está querendo retardar o processo dos alunos pobres.
Clarissa Pereira – Vou aproveitar esse momento de entrevista para que tu expliques, a partir do livro, o que é Consciência Fonológica.
Artur Morais – Uma das principais preocupações que aponto no livro e nas pesquisas que fiz é a identificação de um quadro evolutivo, observando o que é importante para que a criança se alfabetize. A tendência nos últimos anos foi que se reduzisse a Consciência Fonológica à Consciência Fonêmica e eu fico preocupado quando vários colegas embarcam nessa. A partir dos anos 1980, se chegou num consenso de que “Consciência Fonológica” é, na realidade, um conjunto de muitas habilidades, que envolvem diferentes unidades: silabas, rimas, fonemas e palavras. Por exemplo: serpente tem pente dentro. Isso é Consciência Fonológica. Identificar semelhanças, produzir palavras semelhantes, comparar quanto ao tamanho, adicionar e subtrair unidades, sintetizar e segmentar. No livro eu faço uma análise, pois defendo que devemos investir em algumas e não em outras habilidades. Percebo, desde 1988, que as crianças têm dificuldade de segmentar as palavras. Existe uma questão de evolução. Crianças com quatro anos já falam cho-co-la-te e, se eu peço, elas contam e dizem que tem quatro pedaços. Essas mesmas crianças, se perguntadas se a palavra casa é maior do que a palavra janela vão poder me dizer que sim, porque elas estão presas ao realismo nominal e não conseguem usar as habilidades de separar as palavras em sílabas e contar as sílabas para responder a questão. Consciência Fonológica é uma grande constelação onde habilidades mais sofisticadas dependem do desenvolvimento das iniciais. Então, aquilo que chamam de mera sensibilidade não é só isso, é um requisito para que outras habilidades se desenvolvam.
Clarissa Pereira – Desde 1986, período do teu mestrado, vens pesquisando a relação da consciência fonológica com a alfabetização. Durante minha graduação em Pedagogia na UFRGS, de 2006 a 2011, a gente pouco discutia esse conceito, não estava tão em evidência como hoje. No livro, trazes as possíveis causas desse assunto não entrar na formação de professores. Como podes nos ajudar a entender a “briga” que rodeia esse tema?
Artur Morais – A primeira pesquisa que fiz sobre consciência fonológica foi com uma colega da Secretaria Municipal da Educação de Recife, Noêmia Lima. Era exatamente essa análise das relações entre psicogênese e consciência fonológica. Comprovei, nas diversas pesquisas que fiz, com ela, sozinho, ou com meus orientandos, que existia a relação e ela era evolutiva. Mas, do ponto de vista histórico, é compreensível que haja uma oposição entre os partidários da psicogênese, do letramento e da consciência fonológica. Isso fez com que, num país como o Brasil, fosse proibido falar de consciência fonológica. Isso ficou como se fosse algo pecaminoso. Creio que existe muito preconceito. Há uma divisão entre os que não têm uma visão evolutiva, que não estão preocupados com o letramento, e os que estão preocupados com ele, preocupados em respeitar a criança, mas que desconsideram que nenhuma criança vai chegar a uma hipótese alfabética sem ter desenvolvido várias habilidades de consciência fonológica. Ela só vai ter uma hipótese silábica se desenvolver habilidades de consciência fonológica, e eu quero que me provem o contrário.
Clarissa Pereira – Existe uma lenda de que só a consciência fonológica pode salvar a educação no Brasil. Tu sempre defendes que só ela não basta. O que podes esclarecer sobre isso?
Artur Morais – O grande nó é esse: os mercadores de educação, os autores, os empresários de métodos fônicos, querem vender os pacotes como se fosse a salvação para o fracasso em alfabetização na escola pública brasileira. Desde as primeiras pesquisas, vi que não era suficiente ter consciência fonológica. Eu tenho um exemplo que é emblemático: um menino chamado Jonas chegou ao fim do ano com muitas habilidades de consciência fonológica, mas continuava com hipótese pré-silábica. Compreender como o alfabeto funciona não é uma questão somente de consciência fonológica. Emília Ferreiro tem toda razão quando diz, em 1990, que existem processos cognitivos que implicam a compreensão das partes escritas e partes orais, dos todos orais e dos todos escritos. É preciso a criança compreender também a natureza sequencial da escrita e é preciso ela tratar as letras como objetos substitutos, que, apesar da variação na aparência, tem uma identidade”. Então, todos os “p” (pês) do mundo, sejam maiúsculos, minúsculos, cursivos, ou de qualquer fonte do cardápio de um computador, tudo é o mesmo “p”. Para um adulto, é muito fácil pensar nisso, mas, para uma criança, a simples diferença física exige que ela trate as letras como classes conceituais. Tudo isso é desconsiderado pelos “partidários da consciência fonológica”, que a tratam como “a ponte para a alfabetização”. É esse o problema.
Eu diria, então, que o melhor método de alfabetização é aquele que consegue dar conta da dimensão do letramento e da reflexão do sistema de escrita alfabética
Clarissa Pereira – Agora, uma pergunta [polêmica, claro! Aliás, preciso aproveitar um professor que admiro por suas posições sempre bem fundamentadas, sem medo de lutar pelo ensino público de qualidade] que eu não poderia deixar de fazer: trabalhando com alfabetizadores de todo o Brasil em minhas redes sociais, site e cursos, percebo uma enorme insegurança em alfabetizar. Às vezes, sinto que alguns professores ainda se sentem “perdidos”, sem um método fechado a seguir, e a pergunta que a mim mais chega é “Qual o melhor método de alfabetização?”. Estamos correndo o risco (aliás, isso já está acontecendo) de retomarmos uma ideia de método salvador para a alfabetização, visto que vivenciamos inúmeros casos de alunos que não estão se alfabetizando no ciclo de alfabetização e, alguns pesquisadores, reduzem este “fracasso” ao construtivismo, à Paulo Freire ou ao abandono aos métodos. Com isso, prometem uma nova formula mágica. Como, podemos, Artur Morais, ajudar nossos professores a serem protagonistas do seu planejamento, adotando uma perspectiva de alfabetizar em contexto de letramento, considerando as facetas linguística, interativa e sociocultural[5]? Qual seria o melhor método de alfabetizar, sem dar a nossa receita, a nossa fórmula mágica?
Artur Morais – Discutir métodos de alfabetização é uma questão de política pública. Estamos vivendo um momento de ataque desastroso à educação brasileira em todos os âmbitos, da pós-graduação à educação infantil, sem precedentes. Acho que temos que estar muito alertas, porque me parece puro pretexto essa acusação de que a pedagogia Paulo Freire é responsável pelo fracasso da escola, ou que o construtivismo é o responsável pelo fracasso da escola. Primeiro, porque quem está afirmando isso é absolutamente ignorante em termos de educação. É má-fé, certo? É crime fazer esse tipo de acusação gratuita, sem conhecer o campo. A gente vai às escolas e encontra muito mais um casamento de ensino com método silábico e episódios de letramento, rodas de leitura, leitura de jornal, etc. A primeira coisa que eu queria chamar atenção é para a necessidade de metodologia de alfabetização e essa premissa começar desde a Educação Infantil. Não no sentido de torná-la, a Educação Infantil, um espaço de ensino sistemático de relação entre letras e sons, mas permitir que as crianças das camadas populares possam refletir sobre palavras e viver a leitura, a compreensão de textos e produção deles, tal como crianças de classe média vivem nas escolas mais progressistas. Eu diria, então, que o melhor método de alfabetização é aquele que consegue dar conta da dimensão do letramento e da reflexão do sistema de escrita alfabética, ler e compreender textos, desde antes de ter hipótese alfabética, porque, desde antes dela, a criança já avança muito na questão de compreensão de textos escritos e já pode avançar na questão de produção escrita, qual a natureza, qual o gênero textual. E assegurar, ao mesmo tempo, que ela reflita sobre palavras, para poder vir a realmente compreender e dominar as relações entre som e grafia. Isso não implica ter um material “estruturado”, um “pacote fechado” que é usado de norte a sul do país. Eu acho que a gente está vivendo um momento de mercantilização e de privatização horrorosa da educação e que esses grupos de mercadores da educação se acham no direito de dizer: o meu “sistema”, o meu “apostilado” vai dar conta do problema brasileiro, do Oiapoque ao Chuí, se eu obrigar os professores a fazer segunda, terça e quarta as páginas 45, 46 e 47 do meu “sistema”, sem dar nenhuma liberdade para que eles utilizem seus conhecimento prévios, para que eles respeitem as suas crianças. O grande problema desses métodos fechados como a salvação para a insegurança do professor alfabetizador é a desqualificação do profissional. O professor é tratado como um imbecil, que só vai funcionar se ele for repetir, literalmente, a mesma coisa em todos os espaços. O maltrato com o profissional da educação é tão grande que os grandes mentores de solução, dos grandes institutos, das empresas A e B, acham que professor não tem conhecimento. É a história do Uber: qualquer um pode entrar em sala de aula e seguir o que já está pronto ou online para ele repetir com as crianças. Além da desqualificação profissional e do desrespeito absoluto com os professores, esses pacotes fechados são o anticonstrutivismo o antirrespeito à heterogeneidade. Todas as crianças, independentemente do nível de compreensão, ou de aprendizagem que alcançaram, são obrigadas a fazer a mesmíssima tarefa durante todo o dia. Não existe aquilo que a gente pensa que é necessário, que é o ajuste do ensino aos diferentes níveis de aprendizagem. Penso que o Estado tem que assumir uma postura de política continuada e realizar trabalhos como os que vejo na Espanha. E nem é um país riquíssimo, mas, lá, os professores estudam, planejam, frequentam centros que propiciam uma formação continuada. Isso é questão de política pública. Não é criando materiais que vão enriquecer empresários já ricos que a gente resolve o problema da alfabetização no Brasil. É preciso ter política pública, que respeite o professor, que dê condições de trabalho, que ofereça melhor remuneração e que, sobretudo, respeite a diversidade de saberes dos professores.
Clarissa Pereira – Sobre a questão da metodologia: o que podes falar sobre não termos como realidade a possibilidade de atendimento específico e personalizado de acordo com as necessidades e evoluções de cada aluno?
Artur Morais – Penso que é preciso olhar dentro da lógica da instituição escolar como um todo. O sistema de ciclos, ao qual sou favorável, se tornou uma carta de boas intenções. Ah, “eu respeito a diversidade, eu respeito isso e aquilo”, mas, na prática, eu não asseguro nada do que respeito, porque não tenho meios de atender a heterogeneidade e a diversidade. Então, o que devemos fazer para que o sistema de ciclos dê certo? Pois bem, a primeira coisa é: não responsabilizar a professora individualmente. Precisa-se olhar o problema com um olhar coletivo, porque a questão é de gestão escolar. Sem ter uma discussão coletiva sobre o que vai se fazer, havendo ausência de currículo, de acordos internos sobre as prioridades, sem a formação de equipes especializadas em atender alunos que têm dificuldades não é possível alfabetizar. A grande questão é que só se tem educação de qualidade gastando.
Clarissa Pereira – Para encerrar, gostaria que o senhor retomasse a fala sobre a última versão da Base Nacional Comum Curricular.
Artur Morais – Estou muito preocupado com empresários apresentando seus produtos miraculosos e dizendo: “alinhado à BNCC”. Quando a BNCC surgiu, tinha a proposta de ser algo debatido publicamente e foi o que aconteceu na primeira versão. Mas, com a chegada do golpe, uma segunda versão foi apresentada às pressas. O que a gente tem como versão final é uma colcha de retalhos, um pacote que ninguém sabe por que foi parar sendo aquilo que é. No caso da Língua Portuguesa, quero denunciar: a BNCC não tem coerência entre o que propõe na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. O trabalho com a escrita, na Educação Infantil, é tão “escanteado”, que a própria palavra escrita não aparece no eixo curricular em que alguma coisa de escrita aparece. As crianças não são ajudadas a compreender o sistema alfabético na Educação Infantil. Não podemos nem comparar com o que acontece na França e em Portugal, onde o Estado se responsabiliza para que a criança saia da Educação Infantil compreendendo o sistema alfabético. Lembro a todos que eu sou favorável à existência de currículo nacional, estadual e municipal. Não vejo nenhuma vantagem em não se ter currículo. Dentro das universidades públicas eu sou minoria, porque a maioria dos meus colegas, em nome de lutar contra a homogeneidade, contra a normatização, dizem que currículo é “camisa de força”, “aprisiona” e “desrespeita a diversidade cultural”. Eu tenho um pensamento republicano, ainda, que é preocupado em garantir os mesmos direitos de aprendizagem a todos, independentemente da origem sociocultural, ou do poder de renda da família em que o indivíduo nasceu. É muito bom ter currículo, como acabei de defender, mas é necessário que os professores participem de sua construção. Eles devem ser autores. Nunca vou querer que um professor se submeta a um currículo imposto. É necessário que ele use suas táticas para ver o que ele, como um ser pensante, ético e justo, acha que é importante para os seus alunos. Isso é política pública, isso é respeito pelo profissional.
Assista à entrevista na íntegra:
[1] MORAIS, Artur Gomes de. Consciência fonológica na educação infantil e no ciclo de alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
[3] MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de Escrita Alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
[4] SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Ática, 2016.
[5] Facetas exploradas por Magda Soares no livro referenciado (Alfabetização: a questão dos métodos).
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Obrigada, Clarissa, por nos proporcionar conhecimento nos mais variados formatos.
Colhi informações importantes para o meu TCC, e nem precisei ter o trabalho com as referências, pois foi só um clic. Além de muitas dicas de atividades e conceitos importantes, que estão enumerados e referenciados em seus trabalhos.
GRATIDÃO.
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Uau, que máximo, Cláudia!!
Ficamos gratas por participar da tua formação💙
Bons estudos!
Daiane #EquipeClarissaPereira